Publicado em 31 de março de 2011 no Diário do Nordeste por MAYARA DE ARAÚJO
Gente gostei tanto dessa matéria que postei ela para vocês lerem...
O teatro nordestino comprova sua força no Festival de Curitiba. O destaque da abertura foi a recente parceria do grupo Clowns de Shakespeare (RN) com o diretor Gabriel Villela
O texto base da peça era, de fato, uma tradução de "Ricardo III", de William Shakespeare. Mas William, meu caro, aquela não era a sua peça. Era, sim, uma senhora releitura, capaz de desconstruir, deslocar o texto do dramaturgo inglês, encontrando no quebra-cabeças espaços para o sertão nordestino, a cultura urbana e o rock britânico. E funcionou? Acredite: todas as referências conviveram em completa harmonia.
Aliás, as palavras referência e harmonia são as que melhor podem descrever o espetáculo "Sua Incelença, Ricardo III", montado pelo grupo de teatro Clowns de Shakespeare com direção do mineiro Gabriel Villela. Escolhida para abrir a 20ª edição do Festival de Teatro de Curitiba, a peça reproduz em linguagem culta a obra shakesperiana, relembrando às ruas a o caráter popular do teatro produzido pelo dramaturgo inglês em seu tempo.
O espetáculo se passa ao final da Guerra das Rosas, em uma disputa pela sucessão do trono inglês. Adotando por armas a crueldade e a ironia, Ricardo, o Duque de Gloucester, segue uma vil sequência de embustes e matanças em prol do título de realeza. Eram por volta das seis da tarde e a pequena arquibancada montada no Largo da Ordem, em Curitiba, já estava lotada. Não deu para quem quis. E já que era mesmo teatro de rua, o povo foi dando seu jeitinho e sentando no chão.
A ideia, no entanto, não agradou, e alguns na plateia reclamavam (com razão) que a arquibancada poderia ter sido um tanto maior. Faltando cerca de meia hora para o início do espetáculo, marcado para as 19h, uma garoa fina fazia saltar na fronte de Gabriel Villela uma discreta ruga de preocupação: o céu curitibano estava mesmo, em um bom "cearês", "bonito para chover". O firmamento deu, contudo, a sua trégua, resguardando o pau d´água para o exato fim do espetáculo.
Apesar de classificado como teatro de rua, o cenário composto por Villela tem organização de palco italiano: a 180 graus, voltado para uma plateia dianteira, mantendo a quarta parede. No entanto, a afirmação perde sua relevância diante dos elementos utilizados e da estética elaborada. A peça, apesar de poder ser realizada em palco italiano, é sim teatro de rua, porque é artesanato, é cultura popular. Traz na essência o sentimento de gratuidade ao povo, devolvendo a ele as referências que tomou emprestado para a produção da montagem. Para além da peça, muitos estavam ali também para prestigiar o diretor, cuja assinatura é sinônimo de honestidade, qualidade e riqueza de detalhes.
Miscelânea
Desde a montagem do cenário, a pesquisa em torno dos referenciais e do modo como seriam concatenados ia se revelando. Os adereços elaborados pelo artesão potiguar Shicó do Mamulengo davam à cena as cores e texturas de uma peça não apenas representativa de um sertão -clichê, mas realmente elaborada nele. O processo de produção foi sobretudo resultado de uma mistura firme e brasileiríssima: a cultura potiguar com a "nordestinidade" do interior de Minas Gerais.
E o mineiro Villela somado aos potiguares Clowns de Shakespeare comprovaram, a seu modo, a teoria de muitos historiadores que acreditam: para além das divisões geográficas, Minas Gerais é região Nordeste. "Minas cultua muito essa coisa dos costumes ibéricos, assim como o Nordeste. Para a produção desse espetáculo, voltei às minhas origens mineiras e também conheci o interior do Rio Grande do Norte. Se não tivesse conhecido Acari e a vila de pescadores, teria saído algo muito do litoral. Fomos pro sertão e tudo aconteceu lá", reconstitui Villela. "O diferencial do mineiro é o talento para estetizar. Os nordestinos são mais explícitos, chegam com tudo, o mineiro é quietinho, conquista comendo pelas beiradas, então temos essa coisa de ir dizendo indiretamente", teoriza Villela.
Preparação
Atores-cantores-dançarinos-músicos-pesquisadores. O que os professores de teatro consideram fundamental para uma completa formação em artes cênicas pode-se ver, com surpresos e bons olhos, no grupo Clowns de Shakespeare. Em "Sua Incelença, Ricardo III", a companhia tira seus ases da manga, seus coelhos da cartola, revelando toda a técnica e o talento de seus atores. Marco França, que encena o protagonista Ricardo III, é um verdadeiro artista dos palcos, ator de excelente performance, voz limpa e voraz e ainda músico. Foi ele um dos responsáveis pela preparação musical e pelos arranjos produzidos para a montagem. O vozeirão dos outros atores também impressiona: sincronizados, harmônicos, celestiais como devem ser excelências.
E no fim do espetáculo, já no camarim, ao subir para cumprimentar os atores, uma surpresa: não é que havia entre eles um cearense? O fortalezense Joel Monteiro, de 28 anos, integrante do Teatro Máquina, lá estava entre o elenco.
Ele conheceu o grupo potiguar em 2004, durante o Festival de Teatro de Guaramiranga e continuou mantendo contato com a companhia. Ano passado, mudou-se para Natal a fim de fazer mestrado em Artes Cênicas na UFRN e soube da parceria entre Clowns de Shakespeare e Gabriel Vilella. "Eles estavam no começo do processo de montagem, iam começar em junho ou julho e precisavam justamente de um ator para o elenco e eu não perdi a oportunidade", afirma Joel.
Segundo ele, a preparação em torno da interpretação e compreensão dos textos ficou bastante a cargo de Gabriel Villela. "Ele tem uma convicção do que quer e do que é arte popular, então pode explicar tudo pra gente e isso na prática, fazendo". O ator revela, no entanto, que também o elenco foi decisivo no processo de pesquisa. "Até o primeiro momento queríamos usar apenas o repertório inglês, mas quando decidimos pelas músicas populares o Gabriel pediu para que apresentássemos a ele algumas referências. Daí vieram as excelências, as canções populares... No terceiro ato, utilizamos um romance chamado ´Cabelera´, da Dona Militana, uma senhora do Rio Grande do Norte, e em cima da melodia criada por ela Fernando e Gabriel fizeram a composição da letra".
Para Joel Monteiro, ao fazer a abertura de um dos principais festivais de artes cênicas do Brasil, o nordeste avança no cenário artístico, não apenas nacional. "Nossa presença aqui é muito importante para a produção nordestina. Mostramos que temos qualidade para abrir qualquer festival de qualquer porte no Brasil e até fora dele. A gente vê o potencial dos artistas nordestinos e se orgulha junto".
MAIS INFORMAÇÕES
Festival de Curitiba 2011 - Até 10 de abril, na capital paranaense. Locais e programações: http://www.festivaldecuritiba.com.br
terça-feira, 5 de abril de 2011
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário