sexta-feira, 6 de novembro de 2009

T.S- Parte III



Continuação da análise do livro feita por Alfredo Monte.

As conferências VII e VIII tratam de Rei Lear, a qual Bradley considera, “no todo”, “imperfeitamente teatral”, apesar do imenso escopo, do volume e diversidade das experiências que contém, numa “interpenetração de imaginação sublime, de páthos pungente e humor quase tão comovente quanto o páthos; a amplitude da convulsão tanto da natureza como das paixões humanas (…) Esse mundo nos parece indefinido, em parte, por sua imensidão, e em parte porque se encontra imerso na escuridão”.

    Qual é o problema, então? Ainda mais que quase todos concordam que se trata da obra-prima suprema de Shakespeare (embora seja a menos popular entre o público das grandes tragédias). “Existe algo na sua própria essência que luta com os sentidos e exige uma realização puramente imaginativa. Trata-se da maior obra de Shakespeare, mas não da sua melhor peça”. Bradley comenta as experiências de modificação do final, com Cordélia sobrevivendo, e “usando de toda a coragem de que me sinto capaz”, afirma que nossa sensibilidade “clama” por esse final feliz. E tem a ousadia de afirmar: “não me refiro à sensibilidade humanitária, filantrópica, mas à dramatúrgica. A primeira quer que Hamlet e Otelo escapem à sua condenação; a última não; mas deseja que Lear e Cordélia sejam salvos”. É engraçado porque ele chega a afirmar que à exceção de Lear, nenhum dos personagens nos impressiona como uma criação magistral (só que suas análises contrariam muito essa afirmação), e podem mais ser vistos como pertencentes a grupos que representam “extremos”, para o lado do bem ou do mal, da condição humana: “Como pode haver homens e mulheres assim, perguntamos a nós mesmos. Como é possível que a humanidade possa assumir formas tão absolutamente contrárias? E, em especial, a que omissão de elementos que deveriam estar presentes na natureza humana, ou, se não há omissão, a que distorção desses elementos devemos o fato de existirem seres como esses? (…) a nós parece que o próprio autor está fazendo essa pergunta”. Daí a tendência da imagística da peça ao bestiário, proporcionando todo um catálogo de comparações, símiles e analogias com os mais diversos bichos, que deve muito também a uma predileção de Shakespeare pela teoria de Pitágoras sobre a “transmigração das almas”.

    Sobre a “ação dupla” da peça (Lear e suas filhas; Gloster, ou Gloucester, e os filhos): “o enredo secundário conta uma história que, por si mesma, precária em densidade [ops], e que dá azo a um contraste extremamente eficiente entre seus personagens e os da trama principal, a força trágica e estatura desta última ganhando relevo diante da conformação mais modesta da primeira [creio que é um equívoco semelhante ao que ele cometeu com relação a Cláudio, o rei, em Hamlet]. Mas seu valor principal está em outro ponto, e não é meramente dramático. Está no fato de que a sub-trama simplesmente repete o tema do enredo principal (…) Essa repetição não se limita a duplicar o sofrimento de que a tragédia dá testemunha: sobressalta e horroriza ao insinuar que a loucura de Lear e a ingratidão de suas filhas não são acidentes ou meras aberrações individuais, mas que nesse mundo frio e sombrio grassa uma força maligna e fatídica, lançando pais contra filhos e filhos contra pais, lançando uma maldição sobre a terra (…) Daí nasce o sentimento que nos assombra em Rei Lear, como se estivéssemos diante de algo UNIVERSAL, não tanto um conflito entre indivíduos, mas entre as forças do bem e do mal do cosmo”.

   Há, então, uma tendência à análise e teorização, ou seja, a arte concreta de Shakespeare deriva para o conceitual, “a tendência que, poucos anos mais tarde, desembocou em Ariel e Calibã [ou seja, em A tempestade], a tendência que a imaginação apresenta na direção da análise e da teorização, da decomposição da natureza humana em suas partes integrantes, e então de conceber seres nos quais um ou mais desses fatores está ausente, atrofiado ou apenas incipiente. Essa, é claro, é uma tendência que produz símbolos, alegorias, personificações de qualidades e idéias abstratas; e estamos acostumados a pensar que isso é bastante estranho ao gênio criativo de Shakespeare, que era concreto no mais algo grau (…) mas é arriscado atribuir limites a esse gênio criativo”. Na outra conferência sobre a peça, ele dirá que “a combinação de paralelismos e contrastes que observamos em Lear e Gloster, e também na atitude dos irmãos Edmund e Edgar em relação às superstições do pai, é um dos muitos sinais de que em Rei Lear Shakespeare estava trabalhando mais do que de hábito sobre idéias consciente e maduramente pensadas”.
A sétima conferência ainda versa sobre o cerne dramático da tragédia, as cenas de tempestade: “Para a imaginação as explosões de paixão de Lear e as descargas de chuva e trovão não são o que para os sentidos têm de ser, duas, coisas, a manifestações de uma coisa só”. E esse é um dos motivos que prejudicam a encenação da peça,onde a necessidade de “efeitos” descaracteriza e diminui de estatura essa identificação: “o motivo é simplesmente tratar-se de poesia, e de uma espécie que não pode ser transplantada para o espaço iluminado pela ribalta, mas respira apenas na imaginação”. Ou seja, voltamos ao começo.

    A oitava conferência analisa os personagens. E confesso que eu sempre cultivei certa aversão e rejeição pela figura de Lear, mesmo sendo minha peça favorita de Shakespeare (gostava mais do que acontece em volta dele, e tinha mais interesse pelos irmãos Edgar-Edmund e pelas irmãs Regan-Goneril). Bradley sacudiu um pouco a minha opinião: “Não existe nada mais grandioso e nobre, em toda a literatura, do que a exposição que Shakespeare faz do efeito do sofrimento na ressurgência da grandeza e no despertar da afabilidade da natureza de Lear (…) que aprende a condoer-se e a rezar pelos miseráveis e pelos desassistidos pela sorte, a identificar a falsidade da bajulação a violência da autoridade, e a enxergar além das diferenças de posto e vestimenta a condição humana ali oculta; cuja visão é de tal forma lavada pelo calor das lágrimas que finalmente enxerga como o poder, a posição social e todas as coisas do mundo, exceto o amor, não passam de vaidade (…) Não existe certamente, no universo poético, outro vulto a um só tempo tão magnífico, tão patético e tão belo quanto ele. Ora, mas Lear deve tudo isso aos tormento que nos fizeram imaginar se a vida não se resumiria ao mal, e se os homens não seriam moscas que meninos perversos torturam para seu divertimento. Não estaríamos igualmente perto da verdade se chamássemos esse poema de A redenção do Rei lear  e declarássemos que a intenção dos ´deuses´ em relação a ele não era nem atormentá-lo, nem ensinar-lhe a ´nobre ira´, mas fazê-lo atingir, por meio de uma derrocada aparentemente irremediável, a própria finalidade e o objetivo da vida?” Bradley  voltará a esse ponto insistentemente nessa conferência e é onde mais claramente vemos a inserção daquela idéia sobre a substância da tragédia shakesperiana da primeira conferência, da ORDEM MORAL que rege tal mundo trágico. E a quintessência disso é a fala de Lear diante do “maltrapilho” (depois da instalação da “loucura”, do som e da fúria em sua cabeça): “Então o homem não é mais que isto?Observem-no bem…Ah, três de nós aqui somos por demais sofisticados, tu és a própria coisa”. Bradley: “sentimos que todas as coisas externas se tornaram insignificantes para ele, e que o que sobra é a coisa em si, a alma em sua grandeza nua” [note-se que mesmo tocando nesse assunto apaixonante do despojamento e desnudamento total da condição humana, Bradley é bem contemporâneo de Henry James, que adorava expressões como “a coisa em si”].

    As questões do parágrafo acima são retomadas na abordagem de Cordélia.  Bradley chega a perguntar: “Por que Cordélia morre?” E sua arte como crítico se eleva nesse ponto, e ele realmente caminha numa corda bamba: “Ora, a destruição do bem pelo mal de terceiros é um dos fatos trágicos da vida, e ninguém pode ser contra a sua representação, dentro de certos limites, dentro da arte trágica”. Mas há um sentimento, uma impressão, que vai além disso, em Rei Lear, nos casos do próprio Lear e de Cordélia: “O sentimento a que me refiro é a IMPRESSÃO de que o ser heróico, apesar de, em certo sentido, e externamente, ter fracasso, é sob outros aspectos, superior ao mundo no qual se movimenta…é antes libertado da vida que privado dela.” Esse sentimento, essa impressão tão pouco crítica já que pouco objetiva e completamente transcendente à análise textual  (e tão apaixonante) “parece implicar a idéia de que, se fosse aprofundado, mudaria a visão trágica das coisas. Implica que o mundo trágico, tal como se apresenta, com todos os seus erros, dolos, fracassos, pesares e perdas, não é a REALIDADE FINAL, mas apenas uma parte da realidade destacada do todo, e, quando vista assim destacada, ilusória; e que SE PUDÉSSEMOS ENXERGAR O TODO, e os fatos trágicos ocupando seu verdadeiro lugar dentro desse todo, nós os veríamos não extintos, é claro, mas de tal modo transmudados que deixariam de ser estritamente trágicos; veríamos, talvez, o sofrimento e a morte significando pouco ou nada, a grandeza da alma significando muito ou tudo, e o espírito heróico, apesar do fracasso, mais próximo da ESSÊNCIA DAS COISAS do que os seres menores, mais prudentes e talvez até  ´melhores´ que sobreviveram à catástrofe” (na nota referente a esse trecho lemos: “Segue-se disso que, se essa idéia fosse tornada explícita e acompanhasse na íntegra nossa leitura da tragédia, confundiria ou até mesmo destruiria a impressão trágica. O mesmo se daria se houvesse a presença constante da fé cristã. O leitor mais apegado a essa fé a põe temporariamente de lado quando está imerso numa tragédia de Shakespeare. Esse tipo de tragédia parte do pressuposto de que o mundo, tal como se apresenta, É A VERDADE, apesar de também despertar sentimentos que levam a crer que NÃO É TODA A VERDADE, e, portanto, NÃO É A VERDADE”).  Ainda dentro dessa linha, temos a idéia (enfatizada no “estupendo” terceiro ato da peça) de que se os maus prosperam nesse mundo e os bons sofrem é pela própria intensificação do contraste entre o externo e o interno, entre a condição social e a alma, entre o que acontece a alguém e o que se é de fato: “vemos os bons se tornando melhores e os maus piorando em função do êxito. O confortável castelo é um vestíbulo do inferno, a charneca batida de tempestades um santuário”. E a vida é sonho.

     Passo por cima das análises que ele faz dos vilões e dos personagens bons secundários (Edgar, Kent, o Bobo), a não ser por duas observações. Falando do trio infernal (Goneril, Regan, Edmund), ele nos apresenta outra pérola com relação ao “feminino” que não resisto a transcrever, embora corra o risco de trazer ridículo ao meu bom e brilhante Bradley: “Edmund, para não falar de outras atenuantes, pelo menos não é mulher”. Isso para comentar que a filha má é “o ser humano mais vil jamais concebido por Shakespeare”, e o fato de ser mulher torna isso ainda mais impensável!!?? A outra observação é que na fixação da importância do personagem do Bobo, Bradley se compraz imaginando o próprio Shakespeare voltando de uma noitada de bebedeiras e discussões com dramaturgos rivais, concebendo a utilização do Bobo quase como uma provocação criativa (p. 237

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